Chico bebe o leite amargo da mulher amada
Em sua terceira ficção, Chico Buarque retoma a narrativa em primeira pessoa com o Eulálio, um aristocrata carioca centenário que conta suas aventuras nos anos 20 e 30 preso a uma cama de hospital.
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Há quem diga que o Chico Buarque escritor jamais chegará aos pés do Chico Buarque compositor. Mas será que a segunda carreira não foi uma escolha consciente do músico que já esgotou quase tudo o que tinha de dizer no gênero samba, e isso ainda na juventude? A pergunta pode ser respondida com a chegada ao mercado do romance Leite derramado (Companhia das Letras, 196 páginas, R$ 36), de Chico Buarque. O volume está sendo lançado com uma tiragem de 70 mil exemplares, a maior da carreira do autor. São duas capas para o mesmo volume, desenhadas por Raul Loureiro. Segundo a editora, isso aconteceu porque houve dúvida em escolher uma delas. A operação de mega-best-seller se justifica, pois os livros do autor costumam render vendagens altas para o padrão nacional: Estorvo vendeu 180 mil, Benjamin, 85 mil e Budapeste, 275 mil exemplares.
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Se Chico voltasse a lançar um disco hoje (o último tem três anos), certamente não venderia tanto. Sua quarta obra de ficção chega como o título de um astro pop, cercada de expectativa, sobretudo junto a seus fãs antigos. É a melhor de todas que já escreveu, e a mais cinematográfica. Afinal, todos os livros do autor têm sido adaptados para o cinema (o longa Budapeste, dirigido por Walter Carvalho, estreia dia 22 de maio), embora nenhum deles pareça ter sido pensado como ficção “tie in”, talhado para as câmeras, como o fazem muitos romances da nova geração urbana brasileira.
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O trabalho de Chico tem sido cuidadoso. Aos poucos, o autor de canções famosas tem dado lugar ao ficcionista de sucesso, embora menor que o do músico. Não foi possível transferir todos os dividendos sonoros para a literatura. Hoje poucos jovens sabem quem foi o compositor de “A banda” ou “Construção”, músicas que fizeram enorme sucesso nos anos 60 e 70. Aos 64 anos, Chico é razoavelmente conhecido como escritor excêntrico. Tímido, diz que odeia a maior parte dos jornalistas, concede raras entrevistas e, salvo exceções, não aparece nas colunas de celebridades. Esse jogo de repulsão e sedução ainda lhe dá charme especial junto a seu público fiel, em especial ao feminino, que aguarda seus livros como reencarnações de suas velhas canções - e algumas delas de fato renderiam contos genuínos.
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A ideia do enredo de Leite derramado lhe ocorreu em meados de 2008, quando ouviu a sua própria canção “Velho Francisco”, interpretada pela cantora Mônica Salmaso. Diz a letra: “Hoje é dia de visita/ Vem aí meu grande amor/ Hoje não deram almoço, né/ Acho que o moço até/ Nem me lavou”. Foi então, surpreso com seus versos, que resolveu escrever o livro, em cinco meses de atividade intensa. Mas se trata de uma utopia tentar enxergar os antigos versos líricos e engajados de Chico em seus romances. Mesmo porque ele se revelou na ficção uma voz mais amarga e desencantada que a do poeta juvenil.
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Para muitos críticos, o principal deles, Wilson Martins, Chico não passa de um subromancista que capta os modismos narrativos e os adapta a seu próprio discurso persuasivo. Para outros, como Leyla Perrone-Moisés (que assina a mega-orelha de Leite derramado), ele pode ser comparado ao escritor Marcel Proust pela forma como trata a memória de seus personagens. O juízo é exageradamente rigoroso de um lado, e complacente de outro. Nem vigarista nem Proust, Chico tem desenvolvido um estilo peculiar.
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A narrativa é bem tramada, embora sem variedade de personagens; na realidade, poucos se definem para além do narrador confessional. Suas histórias são digressões filosóficas contadas em primeira pessoa e abordam vidas de homens solitários e perversos, envolvidos nas angústias e dilemas que criam para si próprios.
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Em Estorvo, seu primeiro romance, de 1991, o narrador e personagem se deixa atormentar por um rosto distorcido pelo olho mágico de seu apartamento. Então pega sua mala e erra pela cidade, passando do sonho à realidade, sem observar transição, e o resultado é a náusea existencial. Benjamin, de 1995, aborda a obsessão de um fotógrafo por uma mulher morta. O olhar-câmera do narrador distorce os fatos e confunde passado e presente até tornar o mundo insuportável. Budapeste, de 2003, é mais irônico.
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O romance conta o drama de José Costa, o ghost-writer despeitado com a falta de reconhecimento de seu talento. Costa faz então da cidade de Budapeste a rota de fuga e o húngaro, a remissão de seu gênio literário. mantém o padrão dos livros anteriores: a narrativa é em primeira pessoa e o protagonista se revela digno de suspeita do leitor, porque distorce o mundo ao ritmo de seus caprichos e deboches.
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O enredo gira em torno das memórias patéticas de Eulálio, um aristocrata carioca centenário que conta suas aventuras nos anos 20 e 30 preso a uma cama de hospital. “Gira em torno” é o termo correto, porque a narrativa se organiza em 23 capítulos, cada um deles abordando um episódio da longa existência do protagonista. Eulálio conta sua história em espirais que partem de lembranças nítidas, passam por digressões e atingem o delírio, talvez causado por medicamentos fortes do hospital.
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Narcotizado, fala a um interlocutor esfumaçado, que tanto pode ser sua filha de 80 anos como a jovem enfermeira por quem se apaixona. Com isso, o ponto do em que o narrador se encontra oscila constantemente, como se deslocasse sem querer as suas lembranças. Do presente, passeia pelo passado distante como se fosse agora há pouco. No passado, prevê um futuro que já aconteceu - ou não. “É esquisito ter lembranças de coisas que ainda não aconteceram, acabo de lembrar que Matilde vai sumir para sempre”, diz Eulálio, em referência à mulher. Da névoa de recordações surge um arremedo de saga da decadência de uma família, dos privilégios de seu pai, senador da República Velha, ao tataraneto, traficante de drogas. A vida de Eulálio se degrada aos poucos. Inicia na convivência com notáveis em seu palacete na “raiz da serra”. Mais tarde, muda-se para um apartamento chique na Zona Sul, até que é obrigado a saldar dívidas e se conformar em dormir no sofá do quarto-sala da filha, no subúrbio. Por fim, pai e filha vão morar em um quarto nos fundos de um templo pentecostal. As desgraças familiares importam menos que Matilde.
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Ela encarna a paixão eterna e desperdiçada, envenenada pelo ciúmes. Daí o título do livro. Eulálio contempla extasiado a mulher com os seis fartos de leite, amamentando a filha. E a imagem vulgar do ditado “não se deve chorar pelo leite derramado” se converte em epifania, em iluminação. Pois é Matilde e seu leite amargo quem assombra as memórias de Eulálio. Ela dançando samba ao som de “Jura”, de Mário Reis, ela se envolvendo com um francês, ela morena, com seu olhar de “pingue-pongue”, ela vítima da desconfiança doentia do marido, a desaparição súbita.. Invevitável comparar o amor de Eulálio e Matilde com a relação destrutiva entre o ciumento Bentinho e a enigmática Capitu, do romance Dom Casmurro, de Machado de Assis. Pena que Matilde não tenha um milésimo do mistério e da complexidade de Capitu. Como todas as figuras que não são os narradores nas obras de Chico, ela parece uma sombra esmaecida de mulher, ao passo que Eulálio parece vivo, até porque Chico se baseou em pessoas da geração de seu pai, o historiador Sérgio Buarque de Hollanda, com as quais conviveu intensamente. É o caso de seu “padrinho” musical, Vinicius de Moraes, embora Eulálio se pareça mais com um socialite do tipo Jorginho Guinle. Leite derramado daria um bom filme, ou, melhor ainda, uma minissérie de televisão... Caso o adaptador corrigisse e aumentasse a densidade de Matilde na trama.
Créditos: Luis antônio Giron
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